domingo, 1 de junho de 2014

Histórias para Crianças de Maior Idade - parte IV


Era uma vez uma princesa cor de pálida Lua
que vestia os melhores vestidos para ser vista na rua.
Nos pés trazia, em vez de sapatos de cristal,
saltos altos chamativos: verdes, índigo ou coral.

E a princesa desfilava rua abaixo, rua acima...
Ancas baloiçantes num toc toc provocante.
Cabelos soltos esvoaçantes e vestidos de popelina.
Param carruagens, mas nenhum cavaleiro andante.

Já é meia noite,
Mas nem abóbora nem fada madrinha.
A princesa continua sozinha.
Os pés doridos e a noite está fresquinha.
Finalmente para alguém: um príncipe por ventura?
É um ogre. Terá que servir
para sua desventura.

Embarca a princesa, fingindo o agrado.
Cheia de sorrisos, cheia de pompa.
O ogre saliva, que malfadado!
Felizes por momentos, é apenas uma compra.



Histórias para Crianças de Maior Idade - Parte III

Houve um tempo em que os animais falavam a língua dos homens, antes de se terem calado para sempre pois não sabiam argumentar com a estupidez. Nesse mesmo tempo em que os animais tinham ambição, existiu um galo a quem chamavam Zaman. 
Zaman comandava os outros animais com rigor militar: dava a alvorada, passeava-se exuberante com as suas penas brilhantes, quais medalhas de  ouro e bronze  que lhe condecoravam o peito, ditando o momento de comer, de trabalhar ou de dormir.
Todos os outros animais da quinta andavam debaixo da sua disciplina assertiva: tudo tinha que se desenrolar com uma precisão lacónica.
Zaman não o fazia por mal, assim tinha sido educado já pelo seu pai Himmel. Não sabia ser de outra forma.
Quando não era mais que um franguito, Zaman sofreu um grande trauma: um dia enquanto perseguia distraidamente uma larva viu algo que lhe viria a marcar a vida. Deitado na grande mesa dos patrões, Himmel, de asas presas e patas afastadas perdeu toda a sua virilidade na mesma foice que estripava as ervas daninhas do jardim . Ao ver isto, Zaman, de larva a escapar-lhe pelo bico, jurou a si mesmo tornar-se imprescindível aos patrões para não ter o mesmo destino. 
Himmel tornou-se apático e obeso. Os seus últimos préstimos foram as suas carnes macias, dispostas em duas travessas na ceia de Natal, ladeadas de batatas e grelos.
De facto, Zaman era muito útil aos patrões. Nunca lhes falhava nenhum despertar, mesmo no Inverno quando o Sol tomava mais vagar ao subir a montanha.
Como exemplo de perfeição e excelência, o galo Zaman era um reprodutor insigne. A par com a sua galinha de eleição, a galinha Laeia, tinha meia dúzia de pintos: metade de cada gênero. 
Orgulhosos do seu pai, os pequenos seguiam-no para todo o lado imitando a sua postura inflexível e exigente. Ninguém era indiferente a este pequeno pelotão que marchava junto ao seu general, nem mesmo os patrões. Um dia, Zaman ouviu o dono da quinta comentar num suave gargalhar:
- Olha que soldadinhos aplicados! Qualquer dia tomam o lugar ao pai...
Zaman abalou-se por dentro e voltou ao dia em que era apenas um franguito de larva no bico. Sentiu um golpe metálico entre as suas coxas firmes e olhou as seis bolas amarelas, que piavam atrás de si de olhinhos piscos.
Nessa noite, já o galinheiro inteiro penetrava na serenidade nocturna, o galo tomou uma decisão: não iria deixar que o seu posto fosse usurpado por nenhum dos filhos.
Nas quatro noites que se seguiram, um a um, os filhos de Laeia e Zaman foram desaparecendo. O mistério era comentado por todos com grande alvoroço. Zaman fingia-se de luto e só dizia uma palavra:  
- Raposas!
Mas Laeia desconfiava. E na quinta madrugada confirmou as suas suspeitas.
Fingia dormir no seu poleiro quando ouviu um sussurro de penas vindo dos lados de onde o marido dormia . Abriu o seu olho esquerdo e inclinou a cabeça minúscula para ver melhor. Zaman bicava o seu penúltimo filho, já inerte, e devorava-lhe as entranhas ao mesmo tempo que engolia as penas para não deixar vestígios. Não conseguia acreditar: a raposa que devorou os seus cinco filhos tinha crista, penas, bico e dormia ao seu lado.
Olhou preocupada a sua última cria e decidiu-se a protegê-la. 
A partir dessa noite, começou a dormir em cima do seu pequeno pinto como se este fosse ainda um ovo a precisar de ser chocado.
Zaman vivia, então, enfurecido contra o pequeno. Bicava-o a toda a hora e momento, com um olhar esgazeado, enfurecido. Como o filho lhe escapava, bicava-se a si próprio arrancando as penas em desespero, o que ao longo do tempo lhe conferiu um ar triste e ridículo.
Os patrões coçavam a cabeça questionando o comportamento do galo, que já nem a alvorada dava, obcecado em esfrangalhar o último descendente.
Não tardou que o dono da quinta se cansasse do galo louco e o vendesse pela melhor oferta.
Zaman acabou enjaulado durante vários dias numa cave escura e húmida esperando o seu destino.
Uma noite, dois braços peludos e tatuados agarraram-no à força. Atiraram-no para o meio de um circulo delimitado a pernas e cervejas. Olhou o ambiente estranho, ainda a habituar-se à claridade que não via há dias. Do outro lado, um galo negro, luzidio e robusto olhava-o com fúria. 


Morreu nesse dia, olhando as narinas de um homem que se mexiam a cada dois segundos.

Histórias para Crianças de Maior Idade - Parte II


Eram duas vezes uma criança especial. Uma vez mentiu à mãe, outra vez portou-se mal. Duas vezes seguiu o Lobo da Floresta. Uma vez foi pelo atalho, outra vez foi desonesta. O doce de amora guardado para a avó, deu ao Lobo sem demora, sem pejo, enfado ou dó! O Lobo, regalado, lambuzou-se com a iguaria, e a Criança ignorava o desfecho que isto teria. É que as amoras eram frescas, o doce morno e suculento, e três gotas correram a perna da Menina em crescimento. O canídeo, guloso, tratou logo de as sorver, passou a língua molhada pelo pé da dessisada. Sentiu a carne tenra a pedir para ser mordida. Tal foi o susto e o medo, que nada disse a moça de vida já perdida. A língua do Lobo subiu-lhe em direção ao artelho, e os dentes afiados cravaram-se pelo joelho. Rasgou-lhe aquela polpa entre a pele e o tendão. Jorrava agora um líquido do músculo em exposição. O líquido corria num regato improvisado, desceu a colina, atravessou o condado. Como todos os rios correu até ao mar. Passou a Jordânia, chegou ao Egito e derramou-se no Mar, a prova do delito. Tingiu o Mar salgado com a cor do rubi. Um Lobo. Dois Lobos. Três Lobos. Um está guardado para ti!

Histórias para Crianças de Maior Idade - Parte I

O Monstro


Há um monstro no meu armário. De 5 olhos, 20 braços, caninos afiados... Não gosta de música, não lê, nem podia: é mau de ouvido e tem miopia. É verde. De inveja, admito. Às vezes pragueja se fica irritado. Vive escondido, não é nada bonito. Tem mau feitio e um semblante fechado. Assusta-me quando apago a luz. E se a acendo ainda lá está. O monstro feio, verde, bexigoso, é parte de mim e sempre será. Mas, por vezes, este meu monstro, que pragueja, grita e me assusta, chora de tristeza e de angústia. Precisa de colo, e de aconchego. Precisa de beijos, abraços e mimos. Quando isto acontece já não tenho medo. Nessas alturas estendo-lhe a mão. Fico com ele e dou-lhe atenção. Conto-lhe histórias da Terra e do Mar. Falo baixinho para o sossegar. Depois ele acorda do sono profundo, com o ego asqueroso de novo inchado. Perco o carinho. De novo a repulsa. Ele volta ao armário que conservo fechado.