Houve um tempo em que os animais falavam a língua dos homens, antes de se terem calado para sempre pois não sabiam argumentar com a estupidez. Nesse mesmo tempo em que os animais tinham ambição, existiu um galo a quem chamavam Zaman.
Zaman comandava os outros animais com rigor militar: dava a alvorada, passeava-se exuberante com as suas penas brilhantes, quais medalhas de ouro e bronze que lhe condecoravam o peito, ditando o momento de comer, de trabalhar ou de dormir.
Todos os outros animais da quinta andavam debaixo da sua disciplina assertiva: tudo tinha que se desenrolar com uma precisão lacónica.
Zaman não o fazia por mal, assim tinha sido educado já pelo seu pai Himmel. Não sabia ser de outra forma.
Quando não era mais que um franguito, Zaman sofreu um grande trauma: um dia enquanto perseguia distraidamente uma larva viu algo que lhe viria a marcar a vida. Deitado na grande mesa dos patrões, Himmel, de asas presas e patas afastadas perdeu toda a sua virilidade na mesma foice que estripava as ervas daninhas do jardim . Ao ver isto, Zaman, de larva a escapar-lhe pelo bico, jurou a si mesmo tornar-se imprescindível aos patrões para não ter o mesmo destino.
Himmel tornou-se apático e obeso. Os seus últimos préstimos foram as suas carnes macias, dispostas em duas travessas na ceia de Natal, ladeadas de batatas e grelos.
De facto, Zaman era muito útil aos patrões. Nunca lhes falhava nenhum despertar, mesmo no Inverno quando o Sol tomava mais vagar ao subir a montanha.
Como exemplo de perfeição e excelência, o galo Zaman era um reprodutor insigne. A par com a sua galinha de eleição, a galinha Laeia, tinha meia dúzia de pintos: metade de cada gênero.
Orgulhosos do seu pai, os pequenos seguiam-no para todo o lado imitando a sua postura inflexível e exigente. Ninguém era indiferente a este pequeno pelotão que marchava junto ao seu general, nem mesmo os patrões. Um dia, Zaman ouviu o dono da quinta comentar num suave gargalhar:
- Olha que soldadinhos aplicados! Qualquer dia tomam o lugar ao pai...
Zaman abalou-se por dentro e voltou ao dia em que era apenas um franguito de larva no bico. Sentiu um golpe metálico entre as suas coxas firmes e olhou as seis bolas amarelas, que piavam atrás de si de olhinhos piscos.
Nessa noite, já o galinheiro inteiro penetrava na serenidade nocturna, o galo tomou uma decisão: não iria deixar que o seu posto fosse usurpado por nenhum dos filhos.
Nas quatro noites que se seguiram, um a um, os filhos de Laeia e Zaman foram desaparecendo. O mistério era comentado por todos com grande alvoroço. Zaman fingia-se de luto e só dizia uma palavra:
- Raposas!
Mas Laeia desconfiava. E na quinta madrugada confirmou as suas suspeitas.
Fingia dormir no seu poleiro quando ouviu um sussurro de penas vindo dos lados de onde o marido dormia . Abriu o seu olho esquerdo e inclinou a cabeça minúscula para ver melhor. Zaman bicava o seu penúltimo filho, já inerte, e devorava-lhe as entranhas ao mesmo tempo que engolia as penas para não deixar vestígios. Não conseguia acreditar: a raposa que devorou os seus cinco filhos tinha crista, penas, bico e dormia ao seu lado.
Olhou preocupada a sua última cria e decidiu-se a protegê-la.
A partir dessa noite, começou a dormir em cima do seu pequeno pinto como se este fosse ainda um ovo a precisar de ser chocado.
Zaman vivia, então, enfurecido contra o pequeno. Bicava-o a toda a hora e momento, com um olhar esgazeado, enfurecido. Como o filho lhe escapava, bicava-se a si próprio arrancando as penas em desespero, o que ao longo do tempo lhe conferiu um ar triste e ridículo.
Os patrões coçavam a cabeça questionando o comportamento do galo, que já nem a alvorada dava, obcecado em esfrangalhar o último descendente.
Não tardou que o dono da quinta se cansasse do galo louco e o vendesse pela melhor oferta.
Zaman acabou enjaulado durante vários dias numa cave escura e húmida esperando o seu destino.
Uma noite, dois braços peludos e tatuados agarraram-no à força. Atiraram-no para o meio de um circulo delimitado a pernas e cervejas. Olhou o ambiente estranho, ainda a habituar-se à claridade que não via há dias. Do outro lado, um galo negro, luzidio e robusto olhava-o com fúria.
Morreu nesse dia, olhando as narinas de um homem que se mexiam a cada dois segundos.